terça-feira, outubro 16, 2007



A casa dos tios cheirava á avó, a casa da avó, cheirava á avó, até a casa de Lisboa cheirava á avó um mês antes dela chegar...

A avó tinha a dimensão dos gigantes, dos intocáveis, dos seres etéreos e providos de fantásticos dons supremos, e, tal como Deus ( a quem eu temia e tremia ao pensar na sua mão cruel, com que seria um dia punida, por todos os meus pecados), estava acima de todas as razões, de todas as humanidades, e, de todas as pequenas desvirtudes que lhe pareciam defeitos profundos e medonhos e a levavam a acreditar que não haveria qualquer possibilidade de um futuro feliz para uma pessoa suja e impura como eu.

Quando a avó chegava, a casa tornava-se silêncio,e, a sua arrumação era perfeita e constante, e, os biblots e os naperons, voltavam rapidamente ao seu lugar original, com a fantástica certeza, que dali jamais sairiam. Como castelos conquistados aos mouros, lá ficavam, heróicos, estóicos, valentes e seguros, e, os nossos olhos, que, eram grandes, ficavam pequenos á passagem da avó.

Espreitávamos subtilmente por entre o nevoeiro da comida e o cheiro das iscas, e, o cheiro da naftalina, que habitava na arca do enxoval.

A arca do enxoval era outra instituição, que, tal como a avó, tinha o seu lugar certo, e, toda a sala se arrumava em volta da sua magnitude, da sua amplitude, da sua existência. Lá dentro era fácil encontrar panos de cozinha, naperons, uma ou outra colcha de cama, e, as coisa boas bordadas á mão, dobradas do avesso e por passar a ferro, para que o amarelo não usurpasse o branco imaculado dos tecidos vários, que iam do linho á linha e aos turcos, e, os lençóis com rendas levavam-me a pensar em quem iria dormir ali.

Havia também objectos de puro mau gosto, tigelas enviadas pelas tias, e, pequenos brindes de quermesse. Um ovo de coser meias em madeira, que acompanhou as mudanças de idade, as mudanças de arca, as mudanças de vida.

Sempre inócuo e vago.

Sempre presente por lá, sempre inútil, jamais viu concretizar a função para a qual nasceu( um dia coserei meias com ele, para que possa completar a sua existência), ainda assim sempre por lá!

Creio que ainda hoje por lá anda, perdido nalguma caixa de recordações ou entre os brinquedos dos meninos agora adultos, e, que vêm nele apenas o que é...um ovo de coser meias.

(cont.)

1 Comentários:

Blogger aquelabruxa disse...

até que enfim ,musa!
sejas bem regressada :)
com este texto fiquei a cheirar a avó até aqui na minha casa, juro!
beijos de lesmas a arrastarem-se nas estradas molhadas

quarta-feira, 17 outubro, 2007  

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